segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Sagitário leitor

O facto de ter nascido em dezembro trouxe-me vários dissabores: um, de contornos materialistas, a prenda dos anos vinha pelo Natal; outro, de carácter astrológico, fiquei, para sempre, um ser de sagitário; e, o mais grave, de dimensões verdadeiramente trágicas, entrei para a escola quase um ano depois das outras crianças, com, exatamente, seis anos e dez meses. A bem dizer, a perda só foi grande porque foram vários meses de vida sem ler. Esse tempo de privação criou-me um trauma ainda não ultrapassado, condicionando toda a minha existência: desde que fui iniciada na ciência da decifração das letras, um processo de deslumbramento que durou dois meses, nunca mais me separei dos livros. Recordo a primeira paixão, Os cinco salvaram o tio, da Enid Blyton. Foi uma aventura avassaladora, de tão intensa, que me levou à fuga da casa dos meus pais; em cada página lida eu era também parte dos cinco e estava com eles na ilha, na casa da Zé a comer scones, a passear Tim, o cão, ou a descobrir bandidagens perigosas. E os meus pais nunca deram pela minha falta, mas certo é que saltei de aventura em aventura, viajei para outros países, para locais fantásticos, até fui ao fundo do mar e entrei dentro de um vulcão, com o Júlio Verne; vivi não um Amor de Perdição, mas vários com Camilo Castelo Branco, e recuei a tempos históricos com Júlio Dinis. Claro que não saí ilesa, hoje tenho a casa atabalhuada de livros, não chegam as estantes, estão no chão, em caixas, são daqueles amores com os quais tropeçamos e embirramos, mas dos quais não nos separamos. Eu já tentei tudo: decidi não comprar mais livros, ir só à biblioteca, uma relação perfeita, cada um na sua casa, eles sempre disponíveis p’ra mim, à distância de uma requisição; contudo o vício é grande, em poucas semanas voltei a cair na tentação ... e a comprar. Precisava de um relacionamento mais estável, com partilha de espaço... Depois, decidi emprestar ao desbarato, sem registar a quem emprestava e sem pedir devolução. Novo erro, fiquei com mais espaço em casa e com menos saúde no fígado, retorcia-me com raiva dos amigos que usurparam os meus amores. A solução parece ser que me assaltem a casa, me levem os caixotes e despejem as prateleiras, desapareçam com as páginas e páginas de ácaros nacionais e estrangeiros, de romance, poesia, ensaio, teatro e sei lá que mais. Levem-me os livros todos! Para, então, ter espaço livre para mais. Maria João Silvestre, 2007